"Felizes somos nós, Israel, pois o que agrada a Deus nos foi revelado"

Baruc IV, 4

domingo, 26 de agosto de 2012

Quando Dom Pozzo desmascara-se


A Carta de D. Pozzo com seu anexo, após a visita canônica ao Instituto do Bom Pastor realizada pelo cardeal Ricard, D. Pozzo e o Pe. Bonino, O.P., são bem instrutivas pelas exigências que eles formulam.
São de fato exigências que demonstram a medida que o IBP depende da boa vontade de Roma para manter sua existência eclesial. Não responder aos desejos de Roma exporá o IBP à recusa da renovação de uma experiência inconclusa.
Os avisos de Roma são de quatro ordens: canônica, administrativa, litúrgica e doutrinal. Pularemos as observações canônicas por não sabermos exatamente do que se trata.
Dum ponto de vista administrativo e pastoral, o IBP fica imobilizado no discernimento das vocações. É lembrado que a ruptura do Pe. Philippe Laguérie com a FSSPX foi, oficialmente, devido a uma suposta má gestão dos seminários da Fraternidade. E eis que o grande mago das vocações é taxado das mesmas reprovações...
Mais interessante é a demanda feito aos “padres do Instituto [de se inserir] realmente com um espírito de comunhão no conjunto da vida eclesial da diocese”. Esta frase, aparentemente insignificante, é cheia de sentidos. Ela intima para uma verdadeira práxis eclesial destinada a modificar num primeiro momento o comportamento, depois o espírito dos padres do IBP, tanto é verdade quanto se acaba pensando como se vive. Em suma, que os padres frequentem as reuniões sacerdotais, que eles participem das cerimônias comuns, que concelebrem a Quinta-Feira Santa, numa palavra, que eles “se insiram”, que se fundam no meio dos outros, eliminando as diferenças que ainda estão bem presentes.
A subserviência financeira e econômica é igualmente determinada: “O estabelecimento de um conselho econômico ajudará a paróquia Saint-Éloi a tornar-se juridicamente mais conforme as outras paróquias da arquidiocese de Bordeux”. Dito de forma polida e os benfeitores do IBP são amavelmente advertidos...
O padre Laguérie, lembramos, quando foi eleito presidente da associação que administrava a igreja Saint-Éloi, o padre Cacqueray, superior do distrito da França da FSSPX, do qual aquele dependia, nem sequer estava ciente. E eis o padre Laguérie “convidado” a mostrar suas contas mais de perto, embora seja ele o superior geral.
Aperta-se o Cerco Litúrgico
Em outubro de 2007, Le Chardonnet apresentou a obrigação implícita feita aos institutos Ecclesia Dei pelo moto próprio Summorum pontificum, de deixa a porta aberta à celebração da missa nova[1], o IBP protestou fortemente baseado no reconhecimento oficial por Roma do uso exclusivo do rito de 1962[2]. O pe. Christophe Héry tinha razão em 2009; Este uso não foi colocado em causa e o pe. Ph. Laguérie poderia evocar dentro da mesma Pastorale sobre Dom Pozzo, “a confiança recíproca”, o “respeito das pessoas e do direito” e “a colaboração (sic) recíproca” [3]. Mas foi preciso dar tempo ao tempo. Em 2012, não é mais válido e os estatutos interditando celebrar o novo rito precisam mudar. Apenas uma palavra: de “exclusivo” passará a “próprio”.
A Escravização doutrinal
Realmente a serpente não é pequena e o cinismo de dom Pozzo aparece em sua realidade nua e crua. Ela não é pequena. Roma não se esqueceu de nada: a formação do seminário deverá “integrar os estudos do Magistério atual dos Papas e do Vaticano II”. E o anexo acrescenta: é necessário também “inserir um estudo atento do Catecismo da Igreja Católica”. Observemos os termos “inserir” e “atento”.
Esta integração será sem dúvida dolorosa ao pe. Ph. Laguérie que escreveu em janeiro de 1993: “Nossa conclusão é clara: o “Catecismo da Igreja Católica” não é, portanto um engano suplementar (...) ele poderá tranquilizar os ignorantes, e até fazer algum bem acidental, ele não passa de um documento fundamentalmente modernista, na pura lógica da ruptura conciliar, com aquele maquiavelismo no qual se acrescentou um tempero para melhor engolir veneno[4] (...) é um novo desastre para a Igreja "[5].
Quanto à crítica do Concílio pelo IBP – cujas publicações nunca esperamos impacientemente desde sempre – ele ficará seriamente de mãos atadas: “Mais que uma crítica, ainda que “séria e construtiva”, do Concílio Vaticano II, os esforços dos formadores deverão se concentrar sobre a transmissão da integralidade (sic) do patrimônio da Igreja, insistindo (sic) sobre a hermenêutica da renovação na continuidade tendo por suporte a integridade (resic) da doutrina católica exposta pelo Catecismo da Igreja Católica”. (...) Mais claro impossível. Enfim, querem em todo o caso que os padres do IBP se “entretenham em criticar as críticas do Concílio” [6]. Para assegurar a “retomada de todos os atos do Concílio a fim de estabelecer uma crítica melhor, dever-se-á manifestar a ausência de erro e a perversidade de certos atos cuja ambiguidade permitiu o espírito modernista de orquestrar a apostasia imanente” [7]. Em suma, o IBP deve “salvar a tese de Ratzinger: um concílio muito bom trapaceado pessoas muito vis” [8].
Um último pedido que pareceria benigno se não recordássemos que ele contém o ensino do sacerdócio ministerial e os meios de exercício do sacerdócio tido comum dos fiéis: “A formação pastoral deveria ser feita a luz do Pastores dabo vobis”. Esta exortação sinodal contém notadamente a seguinte passagem: “Pelo sacerdócio ministerial, que os padres receberam do Cristo, pelo Espírito, um dom específico, a fim de poder ajudar o Povo de Deus a exercer fielmente e plenamente o sacerdócio comum que lhes é conferido”[9].
A Submissão aos Bispos
Enfim, continuando as múltiplas queixas amargas dos membros do IBP sobre a dificuldade de fundar novas casas, Roma digna-se de tratar de por um fim na inadmissibilidade: “Para resolver a questão de implantação do seminário, fora dos limites de Courtalain, seria possível interrogar a Conferência Episcopal da França, afim de que eles mesmos sugiram os nomes das dioceses onde instalar”. Todos os termos utilizados são ricos em precaução. Além disso, o documento evoca somente a Conferência Episcopal da França. Ele parece, portanto excluir a fundação de outros seminários pelo mundo. O copo está cheio e é amargo.
Como a carta e o anexo de Dom Pozzo o manifestam cruelmente, Roma não mudou, mas ela está bem resoluta em mudar o Instituto do Bom Pastor. O pe. Philippe Laguérie congratulou-se publicamente há pouco tempo em seu blog: “Creio na possibilidade de um acordo prático e na inutilidade total de discussões doutrinais na hora atual” [10]. Logicamente, o pe. Laguérie, e o IBP por sua vez, devem manifestar sua prontidão em por em prática as diretivas da Santa Sé.
O pe. Laguérie esta numa encruzilhada. Ou ele obedece a Roma e endossa os novos compromissos que lhes são pedidos devendo renunciar aos seus princípios doutrinais. Ou ele se opõe à Roma e admite ipso facto o que ele não estava certo 2001 e em 2005 e que era impossível hic et nunc confiar em Roma malgrado suas promessas. Esta é a solução que ele parece optar de acordo com suas próprias palavras: “Quanto às questões doutrinais levantadas pelo relatório da visita canônica, o IBP não necessita de ninguém, sobretudo de criminosos, para guardar a fidelidade integral a seus estatutos iniciais (dos quais eu sou o autor, por favor), em particular sobre seu rito próprio (e exclusivo), a liturgia de 1962”.
Uma coisa é certa, querer um acordo prático sem um acordo doutrina revela-se um impasse para o IBP. Rezamos para que ela vença nesta prova de força, e que ele não recaia, e com ele o IBP, dentro de um novo compromisso.
“E aquele que está de pé cuide-se para que não caia”.


[1] “Bombas-relógio (...) para os institutos do tipo Ecclesia Dei adflicta como a Fraternidade São Pedro ou o Instituto do Bom Pastor, este Moto Proprio não reconhece a possibilidade de qualquer padre membro destes institutos celebrar a segundo o missal de Paulo VI sem que seu superior possa se opor? Afinal, o Motu próprio não indica que tudo “isto tem um valor pleno e estável (...) não obstante todas as coisas contrárias”?" Le Chardonnet nº231, outubro de 2007, p.7.
[2] “Paradoxalmente, tem acontecido de fazerem objeção ao nosso estatuto específico numa leitura desfavorável do novo direito estabelecido em 7 de julho de 2007 pelo Motu proprio Summorum Pontificorum de Bento XVI. Este texto de lei foi promulgado em favor da liturgia tradicional, portanto ele não pode ser invocado como se minimizasse ou restringisse o direito estatutário do IBP. Pois o Moto proprio de 2007, primeiramente revoga o precedente de 1988, e por outro lado não contradiz em nada do direito geral da Igreja (por ex. o cânon 394, sempre vigorando). Ele confirma e garante nosso caráter e nosso direito próprio: celebrar unicamente segundo o ordo de 1962, em todo lugar” Pe. Christophe Héry, “Le charisme propre de l’IBP dans le droit de l’Eglise”, Bulletin de liaison des amis de l’Institut de Bon Pasteur, nº 2, novembro 2009, p.3 e 4.
[3] Ibidem, p. 2.
[4] N. do T.: O Pe. Laguérie fez, nesta passagem, um jogo de palavras com peixe e veneno. No texto ele escreve “poi(s)son”, com um “s” entre parentes, que pode ser lido “poison” (veneno) ou “poisson” peixe.
[5] “Editorial do Chardonnet de janeiro de 1993” em Pe. Philippe Laguérie, Avec ma bénédiction. Quatorze ans au Chardonnet, Certitudes, 1997, p. 275. Ver artigo seguinte.
[6] “Editorial do Chardonnet de março-abril de 1994” em Pe. Philippe Laguérie, Avec ma bénédiction. Quatorze ans au Chardonnet, Certitudes, 199, p. 316
[7] Ibidem, p. 148
[8] Ibidem, p. 148.
[9] João Paulo II, Exortação apostólica pós-sinodal Pastores dabo vobis de 25 de março de 1992, § 17.
[10] “Pacte”, abril de 2001, citado no “Le Blog de l’abbé Laguérie”, quarta-feira 21 de fevereiro de 2012.

domingo, 12 de agosto de 2012

Ainda as variações em torno de um tema

Gustavo Corção

VALE A PENA continuar a conversa de grande proveito para o conhecimento de nossa alma e certa­mente o desenlace de nossa sorte. E aqui me ocorre a idéia de desfazer um equívoco que perturba toda a at­mosfera de nosso tempo: todos imaginam que o termo "amor-próprio" se tornou antiquado e que foi substi­tuído pelo termo "egoísmo" que julgam conhecer. Já o psicólogo ErichFromm, citado em outras linhas, tendo chegado à descoberta sensacional dos dois amores de si mesmo, o bom que nos leva a Deus e o per­verso que d'Ele nos afasta, infelizmente escolheu dois termos que desviam a atenção devida à antiga sabedoria: self love e selfishness, que se traduz por amor de si mesmo e egoísmo. Ora, a idéia que o termo amor-próprio nos incute é distinta da idéia significada pelo termo egoísmo. Este último está horizonta­lizado no plano da justiça e das rela­ções humanas sem nenhuma referência a Deus. Ao contrário, o termo amor-próprio e a idéia que ele nos in­cute é totalmente diversa do egoísmo. A noção de amor-próprio é impossível sem referência à relação homem-Deus, e até pode ser defini­da como uma inclinação má, deixa­da nas almas pelo pecado original, que nos afasta de Deus e nos leva a um desregrado amor de si mesmo e a um amor ainda mais desregrado das criaturas exteriores. Uma es­quecida expressão escolástica defi­ne bem a principal função do amor-próprio: avertio a Deo et convertio ad creaturam. Depois do primeiro passo do amor-próprio, que é a aver­são a Deus, ele se multiplica em fal­sos amores de que a alma decaída tem fome. Posso até, entre os sub­produtos do amor-próprio, incluir o egoísmo e também o bastardo con­ceito de justiça social, nascido nas revoluções contra Deus, e agora sa­boreado pelos novos eclesiásticos.

A espiritualidade do Concílio

Gustavo Corção
ANTES DE QUALQUER consideração sobre o que aconteceu ontem em Lille ou amanhã acontecerá em Roma ou Paris, é indispensável a recolocação dos eixos principais do affaire Lefebvre: em todos os textos esse dramático desenlace de um amontoado de equívocos e erros é apresentado como uma recusa da parte de Dom Lefebvre. Esse virtuoso prelado é apontado como rebelde, isto é, como alguém que, por iniciativa própria e primeira; recusa obediência a um superior hierárquico.
E SSA APRESENTAÇÃO mal feita em quase todas as noticias, explica-se por mil fatores sobejamente conhecidos, mas forçoso é reconhecer que, pela primeira vez nos dez anos de "Igreja Pós-conciliar”, corre pelo mundo inteiro uma emoção e um interesse surpreendentes. Como?! Este bravo mundo ainda se 'interessa pela Religião e especialmente pela Religião Católica?! Infelizmente esse interesse e essa emoção, mesmo no meio dos católicos praticantes, se perdem num ambiente em que as referências doutrinais foram destruídas e espezinhadas. Daí a necessidade de recolocação cuidadosa do problema em seus verdadeiros termos. Não há no caso uma simples recusa, e sim uma recusa provocada por outra recusa mais grave, que não foi promovida por Dom Lefebvre, e sim por toda uma organização eclesiástica, reunida em concílio, e continuada com sínodos, Conferências Episcopais, com o objetivo, tornado hoje evidente, de recusar a continuação tradicional, obediente, da Igreja de Pio XII, Pio XI, Bento XIV, São Pio X... São Pedro, Nosso Senhor Jesus Cristo. Hoje, só não vê que as famosas reformas conciliares produziram não apenas uma Igreja reformada, deformada, transformada, mas Outra, igreja, quem não quer ver, ou quem muito pouco conhecia da Face e da Voz da Esposa de Cristo. Todos nós, para quem esta tenebrosa evidência crescia irresistivelmente, e se impunha como um dever de testemunho, rogávamos a Deus instantemente, gemendo e chorando, que o Sumo Pontífice, Vigário de Cristo, guardasse paternal dileção pelos seus filhos católicos, ainda que por debilidade de temperamento, que o Cardeal Gut chamou de "sua grande bondade", não tivesse forças para reprimir os mil agravos cometidos no mundo inteiro contra o Sangue de Nosso Salvador; ainda que lhe faltassem forças, e que disto tanto sofresse, para castigar um Hans Kung, e os desvarios de tantos cardeais indignos, relapsos, que Santa Catarina de Sena não hesitou chamar "demónios incarnados", ainda assim rogávamos a Deus, à Virgem Santíssima, a São Miguel Arcanjo, a São José, a São Pio V, a São Pio X que protegesse nosso Papa Paulo VI e que de todos os modos o defendessem da tentação de ser Papa conciliador de duas Igrejas inconciliáveis. Chegamos à humilhação de pedir, de esperar que, caso tal coisa acontecesse, não chegasse à extremidade de romper os vínculos de paternidade com aqueles que só desejam viver, se santificar, e morrer na mesma Igreja em que receberam o batismo.

Um dia o povo inglês acordou protestante

Gustavo Corção
Trago ainda Hoje, e ainda motivada pelo affaire Lefebvre uma interessante contribuição de Jean Dutourd publicada em France Soir, no qual a situação do Bispo francês é comprada à do bispo inglês John Fisher, único opositor de Henrique VIII que levou se testemunho até o martírio. Eis o resumo daquela longa e dolorosa histórico: “Em 1535 John Fisher, bispo de Rochester, foi executado por ordem de Henrique VIII “defensor da fé”, porque, único entre os prelado ingleses, recusou a transformar a missa, que é a renovação do sacrifício da Cruz num simples “serviço de comunhão”. Em outras palavras, foi ele o único a se opor à protestantização da Igreja da Inglaterra. Protestantização que se estabeleceu sorrateiramente depois da morte do último obstáculo.”
“O povo vendo que as caras eram as mesmas julgou que a religião não mudara.”
Interrompo Jean Dutourd para resumir seu texto num susto aplicável a toda a atualidade católica: amanhã ou depois o povo católico do mundo inteiro, na sua brutal e mole maioria acordará protestante, ou nem sequer acordará.
A nova religião das Conferências Episcopais ou do Homem que se faz Deus, segundo a lógica interna da mudança perpetua, que os tolos tomam como manifestação de vitalidade quando, na verdade, são sinais de desmoronamento e de morte, essa nova religião em perpetuo devenir depressa atingirá as mais desordenadas formas de protestantismo, não conseguindo sequer manter as formas mais altas e tradicionais da Reforma. No ponto em que se acha o fenômeno, essa igreja ainda reclama para si o Papa eleito na Religião Católica – um Papa diminuído pela colegialidade que já renunciou o báculo e já se desfez da tiara.
Não estamos exagerando, nem gracejando, mas observando três fatos de brutal objetividade: a troca de báculo, sinal de autoridade e de governo, por um bastão de peregrino, o desaparecimento da tiara em torno da qual se tecem as mais variadas suposições, e a hipertrofia das conferências episcopais, tudo isto converge para um sombrio prognóstico.

Em torno do affaire Lefebvre

Gustavo Corção
O mosaico de testemunhos reunidos pelo Jornal do Brasil em torno de Dom Marcel Lefebvre tem a originalidade de começar pelo depoimento de D. Avelar Brandão que assim mereceu especial destaque. Ouvi-o com toda a atenção. Logo de início, em tom grave de incontestável e ilibada autoridade, Dom Avelar Brandão no diz: “é cedo, para afirmar que a desobediência de Dom Marcel Lefebvre já signifique de fato um cisma, é na verdade um sintoma alarmante, um gesto incompreensível”. Pergunta D. Avelar Brandão: “Lefebvre é somente ele ou passou a ser um instrumento de outros que nada têm a ver com a Igreja?”. Na sua opinião, que Lefebvre possa ter amor ao latim e ao rito da missa anterior ao Concílio, bem assim tendências pessoais de conservadorismo político, entende-se, mas que suas convicções cheguem ao ponto de provocar uma rebelião, uma atitude formal de rejeição da autoridade do Papa já não se pode admitir.
A mim, e certamente aos milhares de católicos que leram essas entrevistas, o que certamente parecerá mais difícil admitir e entender é a tranquilidade grave e pausada com que fala em rebelião e desobediência à autoridade do Papa o mesmíssimo personagem que três meses atrás, desobedecendo a mais de dois séculos e de não sei quantos papas, empurrado certamente por forças e interesses contrários ao da Igreja, participou de festividades maçônicas em Salvador. Para mais escandalizar as consciências católicas, Dom Avelar Brandão fez questão de mencionar na loja maçônica o nome do Papa Paulo VI; e fez questão de frisar as boas relações que mantém com o Sumo Pontífice. Como se viu, a seguir, não houve sinal nenhum de reprovação diante do escândalo, da desobediência, da ruptura ostensiva do Cardeal Primaz do Brasil com toda a tradição católica.

A necessidade de explicar tudo

Nas primeiras linhas da entrevista ao Figaro, por Dom Marcel Lefebvre, publicada quinta-feira última nestas colunas, lemos aflitos que Dom Lefebvre acha necessário explicar que a Igreja de Cristo é uma realidade sobrenatural, uma sociedade mística. Porque me afligi? Por ver que no meio do tormentoso processo criado em torno do Bispo que só deseja continuar o que sempre fez na Igreja, o entrevistado tem de começar pelos mais elementares ensinamentos de catecismo. Pensei em Machado de Assis – cuja crítica do Primo Basílio se agigantava num planisfério de mediocridade – a exclamar com indiscreta impaciência: «Arre! é preciso explicar tudo!»
O torturado bispo francês, sem nenhum sinal de impaciência, também tem necessidade de explicar tudo. A quem? Ao povo da fille ainé de l'Eglise ou àqueles mesmos que o acusam de desobediência e de indisciplina cismática?
A verdade é que, em todo o alarido e mesmo nas declarações mais ou menos oficiais que a insólita suspensão a divinis provocou, o termo Igreja, por uma brutal sinédoque, designa a parte visível da Igreja terrestre, e essa mesma despojada de seu belo título tridentino de Igreja Militante. Parece que todo o mundo hoje sabe o que é suspensão, sabe até de ciência recente o que quer dizer a divinis, mas pouquíssima gente católica sabe o que quer dizer Igreja. Daí a trágica, a apavorante necessidade de explicar tudo a começar pelo: «És cristão? – Sim, pela graça de Deus sou cristão».

O que senti

Gustavo Corção
"O Globo" - 04/07/1974
Compelido a voltar a um assunto que seria apenas ridículo sem os altos valores que envolve e sem as centenas de pessoas respeitáveis que compromete, e depois de ter discorrido amenamente em torno de puerilidades que ao menos me descansaram das falsas seriedades que poluem o século, começo hoje por confessar que foi, nesse episódio, o meu principal sentimento, e a minha dor mais difícil. À primeira vista parecerá um simples lugar comum dizer que a carta do “Presidente” da Congregação Beneditina do Brasil não me atingiu em ponto algum. Não me senti picado, mordido, arranhado, envenenado. Nada. Rigorosamente, e diante de Deus o digo, mal percebi que alguém empostava a voz e alçava-se no bico dos pés para chegar a produzir este guincho de grilo: - “Em nome de 424 religiosos, eu Basílio Penido, Presidente da Congregação dos Beneditinos do Brasil, venho declarar que o Sr. G. C., escritor de 77 anos, há muito tempo levanta-se como um energúmeno de maneira irresponsável e caluniosa, contra as tentativas da Igreja em adaptar-se aos tempos modernos.” A ordem das palavras e a pontuação pode ser outra, que no momento não posso verificar. Mas na revista VEJA leio a condensação essencial da página inteira do “Jornal do Brasil” que pode ser esta: “Em nome dos 424 beneditinos do Brasil, o Presidente Penido injuria o Sr. G. C. como a Palma Cavalão do Eça de Queiroz.” Mas a mão que queria esbofetear G.C. resvalou e esbofeteou 424 monges beneditinos. E é precisamente nessas faces amigas, de pessoas sérias e nobres a quem devo o que não poderia jamais resgatar, mas felizmente já encontrei amigo que com o próprio Sangue resgatasse. Enquanto estamos na pauta dos sentimentos não procurarei esconder a dor que senti no melhor de mim mesmo, isto é, na doce gratidão sentida por tantos e tão bons amigos que durante tantos anos me trouxeram consolo e sabedoria.
Lembro-me como se fosse ontem do dia em que pela primeira vez subi a ladeira do São Bento à procura de um Dom Gerardo, e fui atendido por um moço de óculos escuros que parecia estar à minha espera, sabendo por uma conversa de anjos, que o bisonho indivíduo esperado era propenso a enganar-se de portas, janelas e esquinas a dobrar. Não exageraria se dissesse que sempre me lembro dele a me levar pela mão. Antes disso acodem-me à memória as que sempre me encontravam em casa as portas abertas. As portas e o coração. Lauro e Nélson; Haroldo e Weimar; Rocha e Fábio, o austero Fábio que o Presidente Basílio diz ter entrevistado numa sessão espírita.

Um otimismo descabido

O que deseja Roma? É a restauração da Tradição ou repetir a história de D. Gérard e do mosteiro do Barroux? Cabe a pergunta: o otimismo de Campos é justificado ou descabido? Corção, trinta anos atrás, já nos dava elementos para responder a essa candente questão.

Gustavo Corção
"O Globo" - 02/12/1972
Acabo de ler um artigo de meu bom amigo Gladstone Chaves de Melo, que andou a correr terras de Europa em missão diplomática e agora se acha em Lisboa como adido cultural. O autor do artigo intitulado “Depois de procelosa tempestade” conta o que viu e ouviu nas missas e nos meios católicos que visitou, e concluiu com palavras de Camões que
Depois de procelosa tempestade,
Noturna sombra e sibiliante vento,
Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento;
Aparta o sol a negra escuridade
Removendo o temor ao pensamento.
Gladstone Chaves de Melo conclui que as tolices já se desgastaram e que já se vê por toda a parte o que Guerra Junqueiro chamaria “um rosicler d’aurora”. Ora, a mim me parece, tranqüila e objetivamente, que nosso colaborador se engana, talvez pelo fato de ter corrido muitos lugares e por dar excessivo valor ao que viu por onde passou, como viajante, como estranho, para não dizer como turista. Nós outros que ficamos imóveis pudemos apreciar melhor o agigantado volume de estupidez que invade a América Latina vindo de Roma e de toda a cristandade, e a mim me parece que, para tais ponderações, vale mais a leitura repousada do que as locomoções.
Há certa semelhança entre o que diz Gladstone e o que diz Maritain em Le Paysan de la Garonne (p. 79), onde afirma que este erro de hoje é menos perigoso que o primeiro (o maniqueísmo larvado (?)) e que “terá duração menos longa... porque, quando a tolice se excede no meio cristão, é preciso que ela se dissolva depressa, ou que se destaque decididamente da Igreja”.

A Vida Religiosa III

Gustavo Corção
"O Globo" - 10/08/1974
Foi num dos anos 40 . A pedido de Alceu Amoroso Lima formulado em abril de 1941, no Mosteiro de São Bento, no dia do Batismo de minha filha Maria Luisa - já assumira eu a vice-presidência do centro Dom Vital e a direção da revista A Ordem, com o apoio de Fábio Alves Ribeiro. Poucos anos depois tive a sorte de adoecer, creio que uma inflamação de vesícula biliar, que me obrigou a ficar meio acamado, e forçado a interromper por alguns dias a cadeia tirânica de aulas e aulas.
Benditas cólicas, naquele tempo já nos abríramos, Fábio e eu, sobre o mal-estar que nos causavam certas singularidades do movimento litúrgico, que não nos soavam como de bom quilate católico . Nessa semana de resguardo, Fábio trouxe-me diversos livros, entre os quais dois volumes de Garrigou Lagrange: Perfection Chrétiene et Contemplation, que me abriram as portas da luminosa síntese do tomismo e do carmelo, colunas místicas católicas erguidas por tão grandes santos: Santo Tomás, Santa Catarina de Sena, São João da Cruz, Santa Teresa d'Ávila, Santa Teresinha do Menino Jesus, lado a lado, e com o mesmo embasamento da grande tradição beneditina que está na base de todo arcabouço místico que se diferenciou naquelas correntes que deram à Igreja o grande esplendor de santidade que até hoje orienta as almas que se gloriam na Cruz de Nosso Senhor.

A Vida Religiosa II

Gustavo Corção
"O Globo" - 03/08/1974
No artigo de quinta-feira lembrei o que nos ensinaram vinte séculos de cristianismo, e que até anteontem era trivial conhecimento no mundo católico. Refiro-me à importância que sempre teve o monaquismo, como quilate do valor propriamente cristão de uma sociedade e como esplendor da Igreja. Sempre que a Igreja esteve em perigo ou em crise, foram religiosos que a vieram escorar, como no tempo de São Francisco e de São Domingos, que o Papa Inocêncio III viu em sonho acorrerem para o arrimo do cristianismo. Foi a crise da vida religiosa que formou caldo de cultura de onde saiu o desastre do protestantismo. Lutero era um religioso, um homem de votos e clausura, tornado traidor e trânsfuga.
Não admira, pois, que na crise medonha que hoje assola a civilização e desmantela a Igreja, os frades e as freiras ponham tamanho empenho em tomar a dianteira da degradação. Nesta matéria tivemos no Brasil um triste destaque: as mais gloriosas ordens religiosas produziram e continuam a produzir os mais abomináveis frutos: jesuítas, beneditinos, dominicanos e franciscanos parecem empenhados na disputa de uma espécie de prêmio Nobel de rebaixamento e de perversidades. Os moços foram especialmente perseguidos com uma gula indecente, e é rara a família brasileira que não tenha uma filha pervertida ou um filho assassinado na fé por um daqueles religiosos. Para completar a vergonha e culminar a tristeza, todas as apostasias tomaram a direção dos mais odiosos inimigos da Igreja. Sim, a sedução máxima exercida pelo século sobre os religiosos se fez com a n.... feia, burra e triste que é o comunismo. Foi nesse excremento de uma diarréia histórica que se atolaram os religiosos enjoados de ave-marias e padres-nossos, enjoados do Corpo e do Sangue do Salvador.

A Vida Religiosa I

Gustavo Corção
"O Globo" - 01/08/1974

Li nos jornais a notícia da reunião de centenas de religiosos, sob os auspícios da Conferência dos Religiosos, e logo me alarmei na previsão dos disparates que jorrarão para tristeza e vergonha dos que permanecem católicos e, principalmente, dos religiosos que permanecem verdadeiramente fiéis a seus votos. Já me chegam recortes e opúsculos previstos, mas, antes de me espalhar nos comentários dessa matéria, quero hoje responder a uma questão central que foi brutalmente lançada pelo conferencista de uma das sessões: “A vida religiosa” - disse o conferencista - “não tem apoio nas Sagradas Escrituras”.

Ora, essa afirmação é inexata e leviana. Em muitos pontos poderíamos assinalar o apoio negado, mas contentemo-nos, no momento, com o magno texto em que Santo Tomás e seus discípulos tão abundantemente se estribaram. Respondendo ao moço que lhe perguntou o que deveria fazer para ser perfeito, Nosso Senhor respondeu: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuis, distribui o preço pelos pobres e terás um tesouro nos céus; depois vem e segue-me.” O moço recuou e voltou triste, porque era muito rico. Mas não nos precipitemos a concluir que desta sorte se recusou ao preceito geral e irrecusável sem recusa mortal de Deus: o de procurar sempre a maior perfeição do amor de Deus. Santo Tomás ensina IIª IIªe a. 3 ad primum que o moço se intimidou diante dos meios aconselhados por Jesus, mas nada no texto prova que, com a recusa dos meios, tenha recusado os fins. Eis o texto de Santo Tomás: “Nessas palavras do Senhor é preciso distinguir o que traça o caminho a seguir para chegar à perfeição, a saber: “Vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres” e aquilo que concerne a essência da perfeição: “Segue-me.” A esse propósito São Jerônimo escreve: “é por não bastar tudo deixar que Pedro acrescenta aquilo em que consiste a perfeição: “nós te seguimos”. (...) Vê-se pois nos termos deste texto que os conselhos têm um caráter de meio.”

No seu tratado sobre a santificação dos sacerdotes. De sanctificatione sacerdotum, ed. Marietti, p. 85, Garrigou Lagrange volta a insistir nessa idéia de que a perfeição não reside no conselho de pobreza, e cita Santo Tomás na IIª IIªe a. 6 ad primum: “A perfeição da vida cristã, como já vimos, não consiste essencialmente na pobreza voluntária, que é apenas um meio de atingir a perfeição. Não se deve pois imaginar que a perfeição cresça à medida que a pobreza se torne maior. A soberana perfeição é compatível com a opulência.”

A prática dos três conselhos evangélicos, pobreza, castidade e obediência, não é obrigatória para a procura da perfeição sempre maior, que é preceptiva. Mas o mesmo Garrigou Lagrange nos ensina em Les Trois Ages de la Vie Interieure, Tome I, p. 282 e seguintes, que é difícil a subida da perfeição, sem o “espírito dos conselhos”, i. é, sem o espírito de desprendimento. Ora, esse espírito dificilmente se adquire sem a prática efetiva dos conselhos, coisa que constitui a regra do estado religioso para o qual Jesus chamou o moço rico e também para o qual S. Paulo convida quando diz que não casar é melhor do que casar. É portanto errônea e leviana a frase eructada na reunião dos religiosos no colégio São Bento. Pronunciada por um religioso ela se reveste de uma especial repugnância.

O papel da FSSPX na Igreja

Conferência de Dom Lefebvre
Buenos Aires - 13 de agosto de 1981
Senhoras e senhores:
Sempre sinto grande alegria quando volto a esta formosa República Argentina. Já começo a conhecer o país, mas, infelizmente, não posso falar-lhes em espanhol e terei de recorrer ao padre Michel Faure para fazer-me entender.
Sabemos que se formulam muitas perguntas acerca de minha atitude na Igreja, de minha posição na Igreja. Qual é a atitude de Monsenhor Lefebvre na Igreja Católica?
Qual é a situação da Fraternidade Sacerdotal São Pio X no seio da Igreja?
Quero responder a estas perguntas da maneira mais exata e correta. Para isso, creio que devemos considerar brevemente qual é a situação atual da Igreja e, dessa maneira, explicar as razões de nossa atitude e posição.
Penso que me encontrando ante um auditório seleto, ante um auditório profundamente católico, profundamente cristão, não me será necessário insistir sobre qual foi a situação da Igreja até o Concílio Vaticano II. Pode-se dizer que, de modo geral, a Igreja, os homens da Igreja, nos tempos do Papa Pio XII, a quem conheci pessoalmente quando fui Delegado Apostólico para a África Francesa, eram muito diferentes dos atuais. Tive oportunidade de encontrar-me freqüentemente com Pio XII, todos os anos, durante onze anos.
Posso dizer que, de maneira geral, nas Congregações Romanas e no Vaticano, existia um sentido muito profundo da fé católica. Trabalhava-se realmente para o reinado da Fé de Nosso Senhor Jesus Cristo, reinado sobre as pessoas, sobre as famílias e sobre a sociedade.
Certamente, os senhores sabem que há quatro séculos realizaram-se grandes esforços para lutar contra essa doutrina católica, contra essa Fé na Igreja, mas o certo é que quando alguém ia ao Vaticano, verificava que a Fé Católica estava viva em todas essas Congregações romanas e ali se encontrava um apoio considerável, sobretudo para um bispo missionário como eu era.
Naquela época, se necessitássemos esclarecer nossa fé sobre algum ponto da doutrina, era suficiente consultar a Congregação do Santo Ofício para obter resposta clara e precisa, conforme a Fé da Igreja e seu magistério. Não havia vacilação.
Do mesmo modo, para conhecer que tipo de relações queria manter o Vaticano entre a Santa Sé e as sociedades civis, era suficiente dirigir-se à Secretaria de Estado que tinha, então, princípios muito claros e precisos em face dos Estados que não eram católicos ou com relação aos Estados inteiramente católicos.
Lembro-me, por exemplo, de que no tempo do general Franco, na Espanha, o Papa Pio XII dizia-me que nunca se realizara uma concordata tão conforme com a doutrina católica como a concordata celebrada com o governo espanhol. Da parte do Santo Padre, dizer isso é algo extraordinário.
Em todos esses domínios experimentava-se, então, a sabedoria secular da Igreja, de nossa Santa Madre Igreja, como se podem sentir a sabedoria e a proteção da Santíssima Virgem Maria para com os seus filhos. Quando os princípios das relações entre o Vaticano e os Estados estavam imbuídos da Fé Católica, não existiam dificuldades no que se refere às relações dos Estados com a Igreja.

A Visibilidade da Igreja e a situação atual

Apresentamos aqui alguns extratos de uma conferência de Dom Marcel Lefebvre. A dita conferência tem várias qualidades. Além de tratar com profundidade da questão da visibilidade de Igreja em meio à crise terrível que atravessamos, traz o pensamento autêntico de Dom Marcel Lefebvre, tal como ele o expôs aos seus padres pouco tempo depois de Dom Gérard Calvet ter feito seu acordo com o Vaticano, respondendo a alguns argumentos teológicos que este desenvolveu numa publicação do jornal Présent do dia 18 de agosto de 1988. Mesmo se em determinadas cartas, como é natural, S. Exa. tenha falado com maiores cuidados na esperança de mover os adversários a compreender e aceitar a Tradição, não resta dúvida de que seu pensamento estava longe de aceitar o Vaticano II ou a Missa de Paulo VI. Dom Lefebvre responde, assim, com antecedência aos argumentos que tentam justificar a atual posição de Campos. Nossa tradução é tirada da revista Fideliter 66 de novembro/dezembro de 1988, p. 27-31).
Dom Marcel Lefebvre
Meus caros Padres,
Penso que vós que saístes dos seminários e que, estais agora exercendo o ministério e que desejastes guardar a Tradição, vós que desejastes ser padres para sempre, como foram os santos padres de outrora, todos os santos vigários e os santos sacerdotes que nós mesmos pudemos conhecer nas paróquias. Vós continuais e representais verdadeiramente a Igreja Católica. Acredito que é necessário convencer-vos disso: "representais verdadeiramente a Igreja Católica".
A Igreja Visível
Não quero dizer que inexista Igreja fora de nós; não se trata disso. Mas há pouco tempo, disseram-nos que é necessário que a Tradição entre na Igreja visível. Penso que se comete aí um erro muito grave.
Onde está a Igreja visível? A Igreja visível é reconhecida pelos sinais que ela sempre deu de sua visibilidade: ela é una, santa, católica e apostólica.
Eu vos pergunto: onde estão os verdadeiros sinais da Igreja? Estão eles na Igreja oficial (não se trata de Igreja visível, mas da Igreja oficial) ou conosco, no que representamos, no que somos? É evidente que somos nós que guardamos a unidade da fé, que desapareceu da Igreja oficial. Um Bispo acredita nisso, outro já não acredita, a fé é diversa, seus catecismos abomináveis estão cheios de heresias. Onde está a unidade da fé em Roma?
Onde está a unidade da fé no mundo? Fomos nós que a guardamos. A unidade da fé espalhada no mundo inteiro é a catolicidade. Ora, esta unidade da fé no mundo inteiro, não existe mais, não existe mais catolicidade. Existem tantas Igrejas católicas quantos Bispos e Dioceses. Cada um possui sua maneira de ver, de pensar, de pregar, de fazer seu catecismo. Não existe mais catolicidade.
E a Apostolicidade? Eles romperam com o passado. Se eles fizeram algo, foi exatamente isso. Eles não desejam mais o que é anterior ao Concílio Vaticano II. Vede o Motu proprio do Papa que nos condena, ele diz muito bem: "a Tradição viva é o Vaticano II": não se deve reportar mais a fatos anteriores ao Vaticano II, isso não significa nada. A Igreja guarda a Tradição de século em século. O que passou passou, desapareceu. Toda a Tradição encontra-se na Igreja de hoje. Qual é esta Tradição? A que ela se liga? Como ela se liga ao passado?
É o que lhes permite dizer o contrário do que foi dito outrora, sempre pretendendo que somente eles guardaram a Tradição. É o que nos pede o Papa: que nos submetamos à Tradição viva. Nós possuiríamos um conceito equivocado de Tradição, visto que ela é viva e evolutiva. Mas, isto é o erro modernista: o Santo Papa Pio X, na encíclica Pascendi, condenou estes termos: "Tradição viva, Igreja viva, fé viva", etc, no sentido que os modernistas os entendem, ou seja, da evolução que depende das circunstâncias históricas. A verdade da Revelação, a explicação da Revelação, dependeria das circunstâncias históricas.
A Apostolicidade: nós nos vinculamos aos Apóstolos pela autoridade. Meu sacerdócio vem através dos Apóstolos; vosso sacerdócio vem através dos Apóstolos. Nós somos filhos daqueles que nos deram o episcopado. Nosso episcopado descende do Santo Papa Pio V e através dele chegamos até aos Apóstolos. Quanto à Apostolicidade da fé, nós cremos na mesma fé que foi a dos Apóstolos. Nós não mudamos nada e nem queremos mudar nada.
E enfim, a santidade. Não nos faremos louvores e cumprimentos. Se não quisermos considerar a nós mesmos, consideremos os outros, e consideremos os frutos de nosso apostolado, os frutos vocacionais, de nossas religiosas e também dentro das famílias cristãs. Boas e santas famílias cristãs germinam, graças a vosso apostolado. É um fato, ninguém o pode negar. Mesmo nossos visitantes progressistas de Roma constataram a boa qualidade de nosso trabalho. Quando Mons. Perl disse às irmãs de Saint-Pré e às irmãs de Fanjeaux que é com base como a delas que se deverá reconstruir a Igreja, não é um pequeno elogio.
Tudo isso mostra que somos nós que possuímos os sinais da Igreja visível. Se ainda existe uma visibilidade da Igreja hoje em dia, é graças a vós. Estes sinais, não se encontram mais nos outros. Não existe mais neles unidade da fé; ora, é precisamente a fé que é a base de toda a visibilidade da Igreja.
A catolicidade é a fé no espaço. A Apostolicidade é a fé no tempo, e a santidade é o fruto da fé, que se concretiza nas almas pela graça do bom Deus, pela graça dos sacramentos. É completamente falso considerar-nos como se não fizéssemos parte da Igreja visível. É inacreditável. É a Igreja oficial que nos rejeita, não somos nós que rejeitamos a Igreja, longe de nós. Ao contrário, nós estamos sempre unidos à Igreja romana e mesmo ao Papa, evidentemente, ao sucessor de Pedro. Penso que devemos ter esta convicção para não cair nos erros que estão sendo espalhados agora.

A Missa de Lutero

Conferência de Dom Lefebvre
Florence - 15 de fevereiro de 1975 
Esta noite, falarei da Missa de Lutero e da Missa do novo rito. Por que essa comparação entre a Nova Missa e a Missa de Lutero? Porque a história o diz; a história objetiva não é criação minha. (Sua Excia. mostra então um livro sobre Lutero, publicado em 1911, “DO LUTERANISMO AO PROTESTANTISMO” de Léon Cristiani) Ele fala sobre a reforma litúrgica de Lutero. Trata-se de um livro escrito em um tempo, em que o autor nem conhecia nossa crise, nem o novo rito; portanto não foi escrito com segundas intenções.
Primeiramente desejo fazer uma síntese dos princípios fundamentais da Missa, para trazer à nossa memória a beleza, a profunda grandeza espiritual de nossa Missa, o lugar que nossa Missa ocupa na Santa Igreja. Que coisa mais bela Nosso Senhor legou à humanidade, que coisa mais preciosa, mais santa concedeu à Sua Santa Igreja, à Igreja sua Esposa, no Calvário, quando morria na Cruz? Foi o Sacrifício de si mesmo.
O Sacrifício de si mesmo. Sua própria Pessoa, que continua seu Sacrifício. Ele o deu à Igreja, quando morreu na Cruz. A partir desse momento, esse Sacrifício estava destinado a continuar, a perseverar através dos séculos, como Ele o havia instituído, juntamente com o Sacerdócio.
Quando na Santa Ceia, Jesus instituiu o Sacerdócio, Ele o instituiu para o Sacrifício, o Sacrifício da Cruz, porque esse Sacrifício é a fonte de todos os méritos, de todas as graças, de todos os Sacramentos; a fonte de toda a riqueza da Igreja. Isso devemos recordar, ter sempre presente essa realidade, divina realidade.
Portanto, é o Sacrifício da Cruz que se renova sobre nossos altares, e o Sacerdócio está em relação com ele, em relação essencial com esse Sacrifício. Não se compreende o Sacerdócio sem o Sacrifício, porque o Sacerdócio foi feito para o Sacrifício. Poder-se-ia dizer também: é a Encarnação de Jesus Cristo, séculos a fora: usque ad finem temporum (1) , o Sacrifício da Missa será oferecido.
Se Jesus Cristo quis esse Sacrifício, quis também ser nele a vítima, uma vez que é o Sacrifício da Cruz que continua, Ele quis que a vítima fosse sempre a mesma, quis ser Ele próprio a vítima. Para ser a vítima, Ele tem que estar presente, verdadeiramente presente nos nossos altares. Se Ele não estiver presente, se não houver a Presença Real nos nossos altares, não haverá vítima, não haverá Sacerdócio. Tudo está ligado: Sacerdócio, Sacrifício, Vítima, Presença Real, portanto TRANSUBSTANCIAÇÃO.
Aí está “o coração” do tesouro – o maior, o mais rico – que Nosso Senhor concedeu à Sua Esposa, a Igreja e a toda a humanidade. Assim podemos compreender que, quando Lutero quis transformar, mudar esses princípios, começou por combater o Sacerdócio; como o fazem os modernistas. Pois Lutero bem sabia que se o Sacerdócio desaparecesse, não mais haveria Sacrifício, não mais haveria Vítima, não haveria mais nada na Igreja, não mais haveria a fonte das graças.
Como procedeu Lutero para dizer que não haveria mais Sacerdócio? Dizendo: “Não existe diferença entre padres e leigos. O Sacerdócio é universal”. Tais eram as idéias que ele propagava. Ele dizia que há três muros de defesa cercando a Igreja. O primeiro muro é essa diferença entre padres e leigos. (Sua Excia. então lê): “A descoberta de que o Papa, os bispos, os padres, os religiosos compõem o Estado Eclesiástico, ao passo que os príncipes, os senhores, os artesãos, os camponeses formam o estado secular, é pura invenção, uma mentira”. Essa diferença entre padres e leigos é então uma invenção, uma mentira. Eis o que diz Lutero: “Na realidade, todos os cristãos pertencem ao estado eclesiástico”. Não há diferença, a não ser a diferença de funções, de serviço. Todos têm o Sacerdócio a partir do Batismo; têm-no em razão do caráter batismal, todos os cristãos são padres e os padres não têm um caráter especial, não há um sacramento especial para os padres, mas seu caráter sacerdotal lhes vem do caráter do Batismo. Assim também se explica esta laicização dos padres; eles não querem mais ter uma veste particular, não querem mais se distinguir dos fiéis, porque todos são padres; e são os fiéis que devem escolher os padres, eleger os seus padres.
Tais foram os princípios de Lutero, que prossegue: “Se um Papa ou um Bispo confere a unção, faz tonsuras, ordena, consagra ou dá uma veste diferente aos leigos ou aos padres, está criando enganadores”. Todos são consagrados padres, a partir do Batismo. Os progressistas do nosso tempo não descobriram novidades.
Há um novo livro sobre os Sacramentos, aparecido em janeiro deste ano em Paris, sob a autoridade do Arcebispo, o Cardeal Marty. Saiu há pouco. Seus autores descobriram oito sacramentos, não mais sete, porque o oitavo sacramento é a profissão religiosa. Eles dizem claramente, nesse livro, que todos os fiéis são padres e que o caráter sacerdotal vem do caráter do Batismo. Os autores, por certo, devem ter lido Lutero, transformado para eles em Padre da Igreja.
Lutero deu também outro passo à frente, após a supressão do Sacerdócio. Ele não acreditou mais na Transubstanciação, nem no Sacrifício. E disse claramente que a Missa não é um Sacrifício. A Missa é uma Comunhão. Podemos então chamar a Missa de Comunhão, Ceia, Eucaristia, tudo, menos Sacrifício. Não há, portanto, Vítima, nem Presença Real, mas apenas uma presença espiritual, uma recordação ou comunhão. Foi por isso que Lutero sempre combateu as Missas privadas; foi uma das primeiras coisas feitas por ele, porque uma Missa privada não é uma Comunhão. É preciso que os fiéis comunguem. A Missa privada, então, não está conforme a verdade, é preciso suprimir todas as Missas privadas.
Ele chamava a Eucaristia de “Sacramento do Pão”. A Eucaristia, (dizia ele), tornou-se uma lamentável maldade. Essa “maldade” da Missa provém de terem feito dela um Sacrifício. Somos forçados a constatar que não se fala mais de Sacrifício da Missa nos boletins diocesanos ou paroquiais, mas de Eucaristia, de Comunhão, de Ceia. Que singular semelhança com as teses de Lutero!
Além disso, Lutero faz ainda uma distinção entre os fins do Sacrifício da Missa. Ele diz que um dos fins do Sacrifício da Missa é render graças a Deus. A Eucaristia é um SACRIFICIUM LAUDIS, mas não um SACRIFICIUM EXPIATIONIS, não um Sacrifício de expiação, mas de louvor, de eucaristia. Por isso é que se certos protestantes ainda falam de Sacrifício, nunca o é no sentido de sacrifício expiatório, que remite os pecados. No entanto se trata de um dos principais fins do Sacrifício da Missa, a remissão dos pecados.
Por isso é que os protestantes modernos aceitam o novo rito da Missa, porque, dizem eles, (isso saiu publicado em uma revista da Diocese de Estrasburgo, noticiando uma reunião de protestantes da Confissão de Augsburgo), agora, com o novo rito, é possível rezar com os católicos. (L’Eglise en Alsace de 8-12-1973 e 1-1-1974). “De fato, com as atuais formas de celebração eucarística da Igreja Católica, e com as presentes convergências teológicas, muitos obstáculos que podiam impedir que um protestante participasse da celebração eucarística estão desaparecendo e agora vai se tornando possível reconhecer na celebração eucarística católica, a Ceia instituída pelo Senhor. Temos à disposição novas orações eucarísticas, que têm a vantagem de apresentar variações à Teologia do Sacrifício”. Isso é evidente! Há duas semanas atrás, estando eu na Inglaterra, soube que um bispo anglicano adotou, ultimamente, o novo rito católico para toda a sua diocese. E declarou: “Este novo rito é muito conforme com as nossas idéias protestantes.” É pois evidente que para os protestantes, não há mais dificuldades para admitir o novo rito. Por que eles não tomam o antigo rito? Foi o que o Senhor Salleron perguntou aos padres de Taizé: “Por que dizeis que hoje podeis admitir este novo rito e não o antigo?” Portanto há uma diferença entre o novo e o antigo e esta diferença é essencial; não é uma diferença acidental, porque eles não aceitam usar o antigo rito, com todas as orações dotadas de precisão e que esclarecem realmente a finalidade do Sacrifício: propiciatório, expiatório, eucarístico e latrêutico. Esta é a finalidade do Sacrifício da Missa católica que, claro no antigo rito, não o é mais no novo rito, porque não há mais Ofertório. E é também por isso que Lutero não quis Ofertório no rito dele.

O golpe de mestre de Satanás

+Marcel Lefebvre
Nós sabemos pelo Gênesis, e melhor ainda pelo próprio Senhor que Satanás é o pai da mentira. No versículo 44, capítulo 8, do evangelho de São João, Nosso Senhor dirige-se aos Judeus dizendo: “o Diabo é vosso pai e vós quereis cumprir seus desejos. Ele foi homicida desde o princípio, e continua fora da Verdade, porque a Verdade não está nele; sua palavra é mentirosa porque por sua natureza ele mente: pois, com efeito, ele é mentiroso e pai da mentira...”
Satanás é homicida nas perseguições sanguinárias, pai da mentira nas heresias, em todas as falsas filosofias e nas palavras equívocas que estão na base das revoluções, das guerras mundiais e das guerras civis.
Ele não cessa de atacar Nosso Senhor em seu Corpo místico: a Igreja. No curso da História, empregou todos os meios, sendo um dos últimos e dos mais terríveis o da apostasia oficial das sociedades civis. O laicismo do Estado foi, e será sempre, um imenso escândalo para as almas dos cidadãos. E foi por esse artifício que ele conseguiu, pouco a pouco, laicizar e fazer perder a fé de numerosos membros da Igreja, a tal ponto que os falsos princípios da separação da Igreja e do Estado, da liberdade das religiões, do ateísmo político, da autoridade que apóia sua origem nos indivíduos acabaram por invadir os seminários, as paróquias, os bispados e mesmo o Concílio Vaticano II.
Para fazer isso Satanás inventou palavras-chaves que permitiram os erros modernos e modernistas penetrarem no Concílio: a falsa liberdade introduziu-se pela Liberdade religiosa ou liberdade das religiões; a “igualdade” pela Colegialidade que introduziu os princípios do igualitarismo democrático na Igreja, enfim, a “fraternidade” pelo Ecumenismo que abraça todas as heresias, todos erros e estende a mão a todos os inimigos da Igreja.
O golpe de mestre de Satanás foi, portanto, o de difundir os princípios revolucionários introduzidos na Igreja pela autoridade da própria Igreja, colocando essa autoridade numa situação de incoerência e contradição permanente. Se esse equívoco não for dissipado, os desastres multiplicar-se-ão na Igreja. A liturgia tornando-se um equívoco, o sacerdócio também se tornará, e o Catecismo o será igualmente. A própria hierarquia da Igreja vive num equívoco permanente entre a autoridade pessoal recebida pelo sacramento da Ordem e pela Missão de Pedro ou dos Bispos e os princípios democráticos.

Entregar-se

Sta. Tereza Couderc

“Várias vezes, Nosso Senhor já havia me dado conhecer o quanto era útil, para o progresso de uma alma desejosa de perfeição, ENTREGAR-SE sem reserva à ação do Espírito Santo. Mas, nesta manhã, a divina Bondade dignou-se me agraciar com uma visão toda particular. Estava me preparando para começar minha meditação, quando ouvi o ressoar de vários sinos chamando os fiéis para assistir aos divinos Mistérios. Neste momento, desejei unir-me a todas as missas que estavam sendo celebradas e com este intuito, dirigi a minha intenção para que participasse de todas elas. Tive então uma visão geral de todo o universo católico e de uma profusão de altares nos quais se imolava, ao mesmo tempo, a adorável Vítima.
O Sangue do Cordeiro sem mancha corria abundante sobre cada um desses altares que me pareciam envoltos numa leve fumaça que subia para o céu. Minha alma era tomada e penetrada por um sentimento de amor e de gratidão à vista dessa tão abundante satisfação a nós oferecida por Nosso Senhor. Mas também surpreendia-me muito o fato de que o mundo inteiro não se achasse santificado em conseqüência. Perguntava-me como era possível que o Sacrifício da Cruz, oferecido uma só vez, tenha sido suficiente para salvar todas as almas e que, renovado tantas vezes, não bastasse para santificá-las todas. Eis a resposta que julgo ter ouvido: - O Sacrifício é sem dúvida suficiente por si mesmo e o Sangue de Jesus Cristo mais que suficiente para a santificação de um milhão de mundos, mas às almas falta corresponder generosamente. Pois o grande meio para entrar na via da perfeição e da Santidade – é o de ENTREGAR-SE ao nosso Bom Deus.

Mas que significa ENTREGAR-SE? Percebo toda a extensão desta expressão “ENTREGAR-SE”, porém não posso explicitá-la. Sei apenas que é muito extensa e abrange o presente e o porvir.

ENTREGAR-SE é mais que se dedicar; é mais que se doar; é até maior que se abandonar a Deus. ENTREGAR-SE, finalmente, significa morrer a tudo e a si mesmo, não se preocupar mais com o EU a não ser para mantê-lo sempre orientado para Deus.

O Padre Vayssière O.P.: Eremita e Provincial

Ir. Marie Joseph Nicolas, O.P.

Foi um puro foco de vida espiritual que se extinguiu entre nós com o Padre Vayssière, "o santo Provincial de Toulouse", como era muitas vezes chamado na Ordem de São domingos, onde o caráter exclusivamente sobrenatural de sua personalidade era bem conhecido. As recordações aqui narradas desejariam contribuir a prolongar o efeito dessa chama que o habitava e cujo vivo calor será insubstituível. Durante os seus últimos dias, ele não via mais, em sua longa vida, senão uma seqüência de tudo o que a Virgem Santa havia feito por ele: "Tudo tem sido misericórdia na minha vida, dizia, e misericórdia de Maria". Ele resumia esta misericórdia em três raças essenciais das quais todas as outras tinham decorrido: graça do sofrimento, graça da solidão, graça da revelação da Virgem à sua alma. Que seja permitido aos seus filhos acrescentar a esta enumeração a graça que lhe foi dada para eles, a qual chamarei a sua graça de paternidade. Sigamos esta seqüência que nos oferece a interpretação sobrenatural de sua alma e de sua vida.
GRAÇA DO SOFRIMENTO

Para bem apreciá-la, é preciso compreender qual foi o arrebatamento dessa alma diante da bela e rica vida dominicana. Seminarista, era vivaz, ardente e impetuoso de caráter. Compreende-se facilmente, pois sempre permaneceu assim.

Havia nele uma chama. Essa chama notava-se já no Grande Seminário; o assunto habitual de sua conversação com o seu melhor amigo era a vida sacerdotal e os meios de torná-la mais perfeita. Leu um dia a vida de Lacordaire e, chegando a uma página qualquer, ouviu dentro de si um brusco apelo: “Serás dominicano”, que o determinou para sempre. Quis, portanto, tornar-se dominicano “para pregar”; nada era mais nítido no seu espírito, e foi Lacordaire que o levou após si.

Entrou com esse ardor no Noviciado de Toulouse, onde foi muito aplicado no trabalho de sua perfeição e plenamente feliz: “Estou contente demais’, dizia ele com receio ao seu Padre-Mestre, e contou muitas vezes quanta consolação encontrava ao repetir sem cessar as palavras do salmo, que aplicava ao seu estado de órfão: “Meu pai e minha mãe abandonaram-me, mas o Senhor levou-me para perto de si”.

Começou brilhantemente os seus estudos. Porém esse belo início de um sujeito de elite havia de tomar outro rumo. Um profundo esgotamento cerebral tornou-o de repente incapaz de qualquer trabalho intelectual. Nunca sarou completamente, e foi a cruz íntima de sua vida. “Ainda sofro disso”, confidenciava-me algum tempo antes da sua morte. Teve de fechar os seus livros e foi enviado a Saint-Maximin, onde terminou a sua preparação ao sacerdócio. O seu Padre-Mestre ali foi o Padre Colchen, religioso de grande raça, extremamente bom, mas apaixonadamente austero e pouco comunicativo. Ele que enfrentava todas as suas enfermidades para ir a matinas de noite, qualquer que fosse o seu esgotamento, julgava impossível que um tão bom religioso pudesse permanecer privado da graça de praticar as santas observâncias monásticas por falta de saúde. Ele o fez empreender um dia uma novena preparatória à festa de S”ao José, que devia consistir em levantar-se cada noite, custe o que custar. Pensava que um tal ato de fé faria um milagre. No oitavo dia da novena o pobre noviço não tinha nem a força para confessar-se. Diante desta resposta de São José, o Padre Colchen não insistiu. Seriam fechados para sempre ao Padre Vayssière tanto as observâncias como o estudo e a predicação. Assim mesmo, e embora os amasse com fidelidade, sempre insistiu dizendo que o essencial da via religiosa e dominicana não estava ali. Mas, acrescentava, o que é de fato a sua condição essencial é a abnegação, e nisto concordava profundamente com o Padre Colchen, pelo qual sempre conservou imensa afeição.

Foi nesse estado de dolorosa deficiência que foi ordenado padre. Começou então em sua vida o reino cotidiano da Missa. Guarda-se gravado em si mesmo, como um belo retrato, o rosto que tinha ao oferecer o cálice no Ofertório, esse rosto erguido com a hóstia, onde se lia uma tal expressão de oblação e de fé. Era o momento onde havia nele a maior suavidade, pureza e serenidade. No momento da comunhão esse rosto parecia verdadeiramente inflamar-se. Ele dizia: “O sacerdote deve permanecer durante todo o dia o que era no altar, deve viver a sua missa, ser imolado e dado, e dando-se doar Jesus.” 

Mas estou aqui falando já dos seus últimos anos. Uma vez sacerdote, após colaborar algum tempo como Sub-Mestre com o Padre Colchen, foi enviado ao convento de Biarritz, onde não pôde fazer nada. “Certo dia, contava ele, eu estava na sala comum ocupado a ler jornais e também conversando com este ou aquele Padre. O Padre Provincial veio a passar e repreendeu-me vivamente... Porém que queriam que eu fizesse? Não podia nem ler, nem confessar, nem nada: eu me aborrecia.”

Esse estado de deficiência física, o Padre Vayssière chegava às vezes a considerá-lo como a maior graça de sua vida. Por que? – Porque aprendeu assim experimentalmente a necessidade de aniquilar-se para que Deus reine. Foi o fato de não poder por si mesmo fazer nada do que teria desejado que o reduziu a somente apoiar-se sobre a ação de Deus. Foi sem dúvida pouco a pouco que apareceu essa luz desprendendo-se da sua provação. Mas no fim da sua vida a virtude de abandono amadurecera nele. Ou melho9r: o estado de abandono. Ele não vivia mais senão entre as mãos de Deus e da Santíssima virgem. Todos sabemos como ele se aplicava a nunca empregar nenhuma palavra que pudesse parecer colocar em nós o princípio do nosso esforço. Não dizia: amem Deus, mas: deixem-se ser amados. “O deixar fazer, é voar como pássaro rumo à santidade”.

O que, mais do que tudo talvez, fez do seu estado de deficiência uma graça foi a humildade que dele hauriu. Não é fácil falar da humildade dos santos. “Na história da minha alma, diz Santa Tereza de Lisieux, há páginas que somente no Céu serão lidas”. Efetivamente, para falar bem a respeito, precisaria mostrar as misérias que Deus deixa neles, essas faltas “que não magoam o Bom Deus”, mas que os humanos estranham. Ora, os homens não conhecem o lado interior e escondido dessas diformidades, não enxergam a humildade decorrente dessa humilhação. Na alma do Padre Vayssière esta humildade era maravilhosa. Ele mesmo considerava-se apenas para admirar a graça de Deus nas mínimas coisas de sua vida. Creio que a experiência, e sobretudo a aceitação cotidiana das suas deficiências foi a grande mestra de sua humildade. Sendo Provincial, dizia: “Colocaram-me aqui, aceito-o. É para mim humilhação contínua... Porém estou feliz de fazer a vontade do Bom Deus, que abençôo por manter-me na minha pequenez".

A GRAÇA DA SOLIDÃO

Ele também a chamava a graça de sua vocação madalenense. Por si mesmo certamente não teria escolhido esse destino. Quando em 1901 os seus superiores, pensando provavelmente que ele era bom apenas para rezar, e que por outro lado podiam pedir-lhe tudo, o nomearam capelão da gruta de Santa-Maria-Madalena, na Sainte-Baume, esse jovem religioso e trinta e sete anos estremeceu. Muito mais teria estremecido se soubesse que iria permanecer ali trinta e um anos. Deus tirara-lhe o estudo, as observâncias, o apostolado da palavra. Completava agora o despojamento tirando-lhe a vida em comum e a sociedade normal dos homens. A Sainte-Baume é um lugar magnífico, um verdadeiro sítio de contemplação. Não há um dominicano da Província de Toulouse que ali não tenha vivido momentos inesquecíveis e serenidade e de plenitude, no sentimento tão benfazejo do acordo entre a voz das coisas e a oração da alma. Não se poderia descrever essa vasta e pura solidão cuja alma é ainda mais impressionante do que as formas depuradas. Porém retirar-se para viver ali vem a ser uma temível provação. Os dias de inverno podem ser sinistros, a floresta nas chuvas de outono é triste e fria de fazer chorar. O planalto do "Plan d'Aups", quando sopra o mistral, é um verdadeiro deserto áspero e desnudado. E que isolamento em cima da alta e longa crista varrida por um vento furioso! O silêncio das coisas acaba parecendo com a morte. O problema par quem por obediência tornava-se eremita era aceitar essa solidão, desposá-la, esgotar sua graça. Foi o que ele fez e eis porque tornou-se um contemplativo.

Vida Monástica

Nosso tempo é dividido entre oração, estudo e trabalho.
A oração litúrgica, o Ofício Divino, ocupa o primeiro lugar:
“O fundamento íntimo do estado religioso, escreve D. Romain Banquet, é a prática contínua e mais perfeita possível do primeiro mandamento: ‘Adorar a Deus e amá-lo de todo coração’. É por isso que S. Bento escreve na Regra que ‘nada deve ser preferido ao Ofício Divino’, ‘nihil operi Dei praeponatur’. São Bento traduz simplesmente a vontade de Deus e a da Igreja quando ele coloca o Ofício Divino acima de tudo. Tudo, no plano divino, se refere à celebração da glória de Deus” (Doctrine Monastique de Dom Romain Banquet, p.76)

Ao Ofício Divino e inspirada nele se acrescenta a oração pela qual o monge une-se a Deus de maneira mais pessoal. Aliás, a observância do silêncio não tem outra finalidade senão a de tornar mais fácil essa união ao longo de todo o dia.
Depois da oração, o estudo ocupa um lugar importante em nossa vida. Como poderia ser de outra forma se nós só amamos o que conhecemos? E, conhecendo, o amor não procura conhecer ainda mais? A esse respeito nós só temos de seguir nossos predecessores que sempre amaram o estudo, e é por isso que encontramos cinco Doutores da Igreja entre os filhos de  São Bento.
Nossos candidatos ao sacerdócio fazem parte de seus estudos no Seminário da Fraternidade São Pio X na Argentina o que nos deixa felizes por termos assim um laço a mais com a obra de Dom Lefebvre. Esperamos poder ter futuramente nosso próprio corpo docente o que permitirá que todos os estudos sejam feitos no mosteiro, estudos que se prolongarão durante toda a existência do monge, inspirando e esclarecendo sua vida de oração e o apostolado que pode lhe ser eventualmente confiado.
Enfim o trabalho manual completa as ocupações do monge, dando-lhe ocasião de fazer penitência, de se identificar com Nosso Senhor trabalhando em Nazaré e formar seu julgamento por esse contato cotidiano com a realidade das coisas mais humildes mas tão admiráveis da criação, na horta, na cozinha, na padaria e nos diversos ofícios da casa.
O horário que regula essas três grandes atividades do monge em nosso mosteiro é o seguinte:
  • 03:30 - MATINAS, seguidas da “Lectio Divina” 
  • 06:00 - LAUDES, seguidas de oração mental 
  • 07:00 - Café da manhã 
  • 07:30 - PRIMA, seguida de aulas 
  • 10:00 (ou 11:00) - TERÇA e MISSA CONVENTUAL 
  • 12:00 - SEXTA seguida de almoço 
  • 14:15 - NOA, seguida de trabalho manual 
  • 17:00 - VÉSPERAS, seguidas de oração 
  • 18:00 - Jantar 
  • 18:45 - Capítulo 
  • 19:00 - COMPLETAS 
  • 20:00 - Apagar as luzes
Uma vez por semana, após Noa, a comunidade faz uma caminhada recreativa. Além disso, ao menos duas vezes por ano toda a comunidade faz o que chamamos "grande passeio" e que nada mais é do que uma grande excursão a pé pelas matas das redondezas, ocasião em que passamos o dia "em família" ao ar livre, o que não nos impede de aí cantar o Ofício Divino e louvar assim o Criador!

Às nossas atividades propriamente monásticas acrescenta-se, além da assistência espiritual e de formação a nossas irmãs, um discreto apostolado junto às famílias da região assim como a orientação espiritual da pequena escola mantida pelo mosteiro.